sexta-feira, março 17

Nós, os pouco felizes

Caros,

Tenham um excelente fim de semana ...



"Este é o nosso mundo: O que é demais nunca é o bastante (...)"

Legião Urbana, Teatro dos Vampiros


" Examina os registros da história, relembra o que aconteceu no círculo de tua própria experiência, considera com atenção qual foi a conduta de quase todos os desgraçados, seja na vida pública, seja na pessoal, sobre quem possas ter lido, ou ouvido, ou de quem te lembres, e descobrirás que os infortúnios da grande maioria dessas pessoas se deveram a não saberem quando estavam bem, quando era adequado ficarem quietos e satisfeitos. "

Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais

Nós, os pouco felizes
Ana Miranda


Nós, os seres humanos
que vivemos em casas ou apartamentos,
e não em acampamentos nem nos viadutos,
nem nas favelas ou nos hospícios,
nós que vivemos em residências de cujas janelas
podemos ver a cidade em seus ofícios e vícios,
ou as paisagens do campo e suas luzes,
nós que sabemos cantar em prosa e verso,
que podemos andar, sorrir, comer,
temos a indústria e o comércio,
e conta nos bancos, universitários,
que nunca fomos à guerra ou despejamos mísseis,
nós que podemos ver o mar, as ilhas,
as aves, as montanhas, o céu belíssimo,
as nuvens pretas, as estrelas,
a amplidão do mundo,
que temos mapas e a astronomia,
médicos e anestesia, hospitais e poesia,
que podemos viajar, olhar vitrines e comprar,
nós, ai, nós, que sabemos ler e lemos livros,
temos fogões em nossas casas,
temos camas, temos sexo e desejo, temos o beijo,
nós que ouvimos música no rádio ou em discos,
que temos filhos com todos os dentes,
escola, agasalho e nem vivemos em Cuba,
nós que não somos curdos,
nem etíopes nem angolanos,
que temos florestas imensas, rios, terras,
temos seca e temos chuva,
temos quadros e gravuras,
o luar do sertão e as araras,
que choramos no cinema,
que temos alma e lágrimas,
mil caras, uma só, dedos sensíveis e crenças,
amores secretos, jornalistas altruístas,
padres guerrilheiros, músicos ardentes, escritores,
sindicalistas, líderes sem-terra à vista,
violeiros repentistas, loucuras, alvará de soltura,
uma terra com palmeiras onde canta o sabiá,
que temos carro ou sapato sem furo,
temos o passado e o futuro,
nós que assinamos revistas e jornais,
temos casa de campo, mesmo que seja de um amigo
onde há cavalos e pirilampos,
nós que jantamos à luz de velas,
tomamos vinho e meio embriagados
lemos poemas para os passarinhos,
ou para as belas mulheres,
ou para o ser que amamos, e amamos vários,
nós que somo amados, que vamos à praia
ou não vamos mas esperamos a praia vir a nós,
que vestimos roupas e usamos um antigo anel de família
que ainda não foi roubado, e que talvez nunca seja,
que tomamos cerveja,
que temos a confissão e o perdão,
que acordamos tarde e não andamos de trem,
que temos salário, ou renda fixa,
emprego, família, paixão,
nós que temos corpo e estamos vivos,
temos amigos, temos trabalho, fazemos exercícios,
somos hedonistas, artistas, poucos,
nós que fazemos cinema,
que sentimos o perfume e temos sonhos,
que adoramos ouvir estórias
contadas por qualquer estranho,
que dançamos alegres com as crianças,
que gostamos de lareira e frio,
sorvete e calor, o limpo e o macio,
que sonhamos navegar tornando o mundo pequeno,
que usamos biquínis e tangas,
desfilamos nossos seios nus nas escolas de samba,
que não somos da ralé nem da choldra,
nem da rafaméia nem do lúmpem nem da miséria,
que especulamos e ganhamos mas também perdemos,
nós que temos raízes, diretrizes, teatro,
damas atrizes, jogadores, senadores,
ai de nós,
perdoai-nos,
somos os pouco felizes.


(*) Ana Miranda escreve contos, artigos para jornais ou revistas, pre-roteiros para cinema. Seu livro "Desmundo" foi adaptado para cinema, num longa-metragem dirigido por Alain Fresnot.

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