sexta-feira, fevereiro 16

Lembranças do mar, do deserto e a eternidade...

" (...) Deserto marulhante , sob a cúpula de um pálido céu cinza, ó ermo impregnado de acre umidade cujo sabor perdura em nossos lábios! Caminhamos, caminhamos sob o solo levemente elástico, salpicado de sargaço e de pequenas conchas. O vento nos envolve os ouvidos, esse vento imenso, vasto, brando, que livremente, sem freio nem maldade, atravessa o espaço e produz em nosso cérebro um ligeiro atordoamento. Marchamos, marchamos, e vemos os nossos pés lambidos pelas línguas espumantes do mar, que é impelido para frente e, fervilhando, torna a recuar. Agita-se a arrebentação. Vaga após vaga, com um murmúrio agudo e surdo, choca-se com a terra, antes de deslizar, sedosa pela praia rasa. Aqui se dá o mesmo como ali e como nos bancos de areia, lá fora, e esse rumor confuso, generalizado, do suave marulho, sobrepuja, em nossos ouvidos, todas as demais vozes do mundo. Bastamo-nos a nós mesmos e de propósito ouvidamos o resto...Ah, cerremos os olhos, abrigados na eternidade! Não! Olha ali! Naquela vastidão glauca, espumante, que, com enormes escorços, se perde no horizonte, surge uma velha. Ali? Que significa esse "ali"? Quão longe? Quão perto? Não sabes dizer. De modo vertiginoso, isso se subtrai a tua avaliação. Para computar a distância que separa esse navio da praia, deverias saber qual seu tamanho. Pequeno e próximo? Grande e longínquo? Tua vista turva-se em dúvida, pois nenhum dos orgãos e dos sentidos que possuis te informa sobre o espaço. Caminhamos, caminhamos...Desde quando? Até onde? Tudo incerto. Nada se modifica, por mais que avancemos. O "Ali" é igual ao "aqui", o passado é idêntico ao presente e ao futuro. Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece, já não existe tempo."

Thomas Mann
A Montanha Mágica, pg729

Um comentário:

Anônimo disse...

Sensacional!Que literatura!
Abraços