sábado, novembro 3

A Cidade, a maior ilusão !

"A Cidade, a maior ilusão! Certamente, meu príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e a beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido, escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto, rijo e nobre Adão! Na Cidade findou sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior, a socidade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel.... A sua tranquilidade, onde está meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam a arquejante ocupação de desejar - e que nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; adiante obriga a flanejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera ester vastos armazéns com espelhos, onde a nobre Eva se vende, tarifada ao arrétel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himineu, que circula trazendo em vez do odeante facho da paixão a apertada carteira do dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que o faunos amam as ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos! ....Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque lhe arregimenta dentro da banalidade ou lhe empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de idéias e formas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já expremidas - ou então , para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; e alguns são macacos, saltando do topo dos mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão anti-natural onde o solo é de pau, feltro e alcatrão, o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente estrião...E aqui tens, belo Jacinto, o que é a bela Cidade! "

Eça de Queiroz, As Cidades e as Serras

Escanifrado - magro, seco.

Unto - gordura, banha.

Cangalhas - óculos, em sentido figurado.

Chinós - Cabeleiras postiças, perucas.

Arrátel - peso antigo, equivalente a 459 gramas

Himineu - primitivamente este termo indicava um poesia ou hino nupcial, muito usado entre os gregos e os romanos; por extensão passou a signifcar núpcias, casamente e união.

Faunos - divindades campestres romanas; tinham corpo humano mas chifres e pés de bode.

Ninfas - divindades secundárias femininas representantes da força que preside à reprodução e a fecundidade das naturezas vegetal e animal; gozavam do privilégio da juventude eterna.

Sodoma - antiga cidade da palestina, que segundo o Antigo Testamento foi destruída pelo fogo do céu, por caus da depravação e imoralidade dos seus habitantes.

Lesbos - ilha grega, no mar Egeu, pátria de Safo, poetisa grega do século VI a.c., que teria sido sacerdotisa das práticas lesbianas.

Esgares - trajetos, caretas, macaquices.

Cabriolas - Cambalhotas.

Hestrião - literalmente: ator cômico, palhaço; figuradamente homem vil, charlatão.

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