sexta-feira, janeiro 27

O mundo é de quem não sente

Tenham um ótimo fim de semana,
Abraços,


 

"Todo o trabalho do homem é para a sua boca, e contudo não se satisfaz o seu apetite."

Eclesiastes 6;7

O MUNDO É DE QUEM NÃO SENTE
Fernando Pessoa

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela que conduz a ação. Há duas coisas que estorvam a ação: a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda ação é, por sua natureza, a projeção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por seres humanos, segue que essa projeção é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir, e esmagar os outros, conforme nosso modo de agir.

Para agir é, pois, preciso que não nos importemos com facilidade às personalidades alheias, suas dores ou alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de ação considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte: ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre a qual pisa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ser humano que, não lhe podendo resistir, tanto faz que fosse homem ou pedra, pois, tal qual pedra, afasta e passa por cima.

O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da ação com sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. O estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças de jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. (...)

Todo o homem de ação é essencialmente animado e otimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de ação por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da ação; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda livros como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir. (...)

(...) São todos homens de ação: chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres famosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa, e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe   e o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez seja recolhido pelo “Grande Jogador” que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se, sempre contra si mesmo.


Trecho do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, fragmento 303.


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