Pessoal,
Hoje resolvi inovar com um texto "fora dos padrões" que costumo mandar… achei bom demais para dispensar.
Para aqueles que ainda tem concentração e paciência para ler um texto que contenha mais de 10 linhas espero que "aproveitem" bastante...
Desejo a todos um ótimo fim de semana…
Tudo de bom para vocês!
Abraço,
Perplexidade talvez seja a palavra que melhor define o sentimento da época atual. “Somos passageiros de uma nave no percurso das mudanças fundamentais que vêm ocorrendo na sociedade nas últimas décadas”, diz o psicanalista e médico psiquiatra Jorge Forbes. O que caracteriza esse processo, segundo afirma, é a comunicação planetária viabilizada pelo computador e por um acesso irrestrito ao saber. “Passamos da era moderna, dita industrial, para a pós-modernidade, a nova era globalizada”, analisa. “A sociedade, que se organizava de forma vertical, seguindo a hierarquia então vigente, passou a se pautar de maneira transversal, visando a uma multiplicidade de ideais.”
Ele ressalta que a identidade do homem é mutante e está atrelada ao relevo social de sua época. No mundo industrial, a estrutura era vertical: na família, o pai representava a tradição, apontava o caminho; na empresa, havia a figura forte do chefe, o funcionário permanecia muitos anos no emprego almejando alcançar o cargo de diretor; do ponto de vista da sociedade em geral, as pessoas se organizavam em torno dos símbolos pátrios, que davam a identidade àquele agrupamento.
Isso tudo ruiu com a globalização. O pátrio poder foi substituído pelo poder da família. Na empresa, os hábitos mudaram, o funcionário passou a ser valorizado não pelo tempo de permanência no emprego, mas pela pluralidade de sua experiência, pela ousadia, flexibilidade e criatividade. Quanto aos símbolos pátrios, o psicanalista menciona os mercados comuns para ilustrar as transformações ocorridas – países de forte nacionalismo como a França abriram mão de sua moeda (o franco, que levava o seu nome) para adotar a moeda de um continente, o euro, priorizando a quebra de fronteiras.
Não é difícil lembrar como os critérios anteriores eram diferentes. Pouco tempo atrás, como salienta Forbes, as pessoas tinham um programa de vida pré-determinado. Era esperado, por exemplo, que a mulher se casasse entre os 19 e 23 anos e o homem, entre os 24 e 27. A mulher deveria ter filhos (de dois a quatro) até os 30 anos, pois acima disso o parto era considerado de risco e a mulher, “primigesta idosa”. O homem parava de trabalhar entre os 50 e 60 anos, quando começava a fase de curtir os netos e, aos 70, já era época de morrer. Com os avanços da medicina e de outras áreas de pesquisas, entretanto, a expectativa de vida aumentou substancialmente. O indivíduo não vai mais se aposentar; vai ter outro tipo de trabalho. Aliás, acabou também aquela concepção de que as profissões legítimas se restringiam a medicina, engenharia, direito ou ser funcionário do Banco do Brasil.
Diante dessa quebra de padrões e total relativização de valores, as pessoas passam a ter total poder de decisão sobre suas vidas. O psicanalista explica: “Antes, as marcações padronizadas determinavam como o homem deveria ser e agir. Havia os acomodados, favoráveis aos padrões, e os rebeldes, que combatiam essas regras. De repente, você tira tudo isso. Num primeiro momento, a sensação é de alívio, de felicidade. Essa alegria frente à liberdade, porém, dura pouco, pois traz consigo a angústia de ter de escolher em meio a múltiplas opções, sabendo que não há possibilidade de gozá-las todas”.
Culpar a globalização pelo estresse que essa situação gera é tão tolo, no seu entender, quanto atribuir o fato de alguém ser gordo à variedade de iguarias que os restaurantes de bufê oferecem. “As pessoas estão estressadas não por terem várias opções, mas por serem covardes no ato de escolher. Entre dez coisas, quando você escolhe uma, a única certeza é a de que você perdeu nove. A ‘uma’ que você escolheu é uma aposta. Como diz Etienne de La Boétie no próprio título do Discurso da servidão voluntária, ou Pascal, ao afirmar que se apavora com o silêncio desse universo infinito, com a não resposta sobre o que ele deve fazer. O homem da globalização se angustia, se sente perdido, sem norte, desbussolado. É preciso entender, entretanto, que o ‘mundo cardápio’ acabou. Hoje o indivíduo é responsável pelas próprias resoluções.”
Discípulo e um dos principais introdutores do pensamento de Lacan no Brasil, Jorge Forbes é autor, entre outros livros, de Você quer o que deseja? e co-autor de A invenção do futuro, no qual são pensados modos de viver nessa nova era de quebra dos ideais. Ele se inclui entre os autores que pesquisam soluções para os problemas recentes, para que o homem não fuja da liberdade obtida, mas avance e aprenda a usufruí-la, buscando a criatividade, inventando novos caminhos. E lamenta os movimentos de recuo – dos que se agarram aos padrões morais dados pelas neo-religiões e pelos livros de auto-ajuda, que acabam adormecendo a inteligência e diminuindo a percepção do mundo, e aos dogmas cientificistas, que determinam uma maneira de ser em nome de uma pseudociência.
Em contrapartida, o psicanalista constata o crescimento da boa produção literária, aquela que leva o indivíduo a ter dúvidas, a se questionar, ver novas formas de ser, abrir a cabeça. Um gênero interessante, a seu ver, que vem ganhando força, são as biografias, que mostram as especificidades da vida de cada um, não para que o leitor as imite, mas para que conheça a forma como aquelas pessoas realizaram seus sonhos, como assumiram sua singularidade.
“O mundo está vivendo um novo renascimento”, afirma. “As palavras de ordem agora são invenção e responsabilidade. Há duas opções: abrir mão da singularidade e tornar-se um genérico, ou ser criativo, responsabilizando-se pelas próprias escolhas, que serão feitas não mais a partir de necessidades e sim da vontade de cada um. As pessoas terão de inventar uma solução a partir do seu desejo, inscrevê-la, patenteá-la. A cultura, que antes era um entretenimento para as horas de lazer, algo para descansar a cabeça, hoje passa a ser o cimento social. E o passageiro desta época não precisa invejar nenhum outro de tempos anteriores, porque ele tem uma chance fantástica de inventar formas de vida diferentes, de vivenciar o renascimento das artes, da cultura, do cinema, da literatura. A cultura é uma expressão do espírito, do novo, da surpresa, do diverso, da contestação; nesse contexto não padronizado, ela adquire cada vez maior peso e significado.”
Numa análise geral do quadro contemporâneo, Forbes destaca as transformações na área da educação, em que os alunos sentem total estranheza e distanciamento em relação aos valores típicos da época anterior. A tônica não é mais aprender a pesquisar, mas aprender a inventar. Ao mesmo tempo, chama a atenção para alguns fenômenos sociais de ordenação entre os jovens, como os esportes radicais, nos quais eles buscam testar os limites do corpo, e a música eletrônica, que simboliza os monólogos articulados, ou seja, as pessoas estão juntas sem necessidade de se compreender. Outra mudança importante: as empresas deixaram de ser estáticas para atuar de forma interativa, enfatizando não mais as tarefas repetitivas, mas a expressão dos talentos, e criando mecanismos para que cada um se responsabilize frente ao desempenho geral das atividades.
Finalmente, ele diz que o consumo está se tornando mais consciente, menos de impulso, e que o amor também será mais autêntico. “Estamos na época do amor responsável. Se alguém está com o outro é porque quer, não porque as regras o levaram a isso. A família terá uma função primordial, não como padronizadora de comportamento, mas como base afetiva – do gostar independentemente do jeito que o outro seja. Como a globalização abriga uma multiplicidade de singularidades, as pessoas vão aprender a gostar das diferenças e, havendo maior participação no vínculo social, maior possibilidade criativa, poderão até se sentir felizes.”
Fonte: http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/n144/edicao/htm/mat_01.htm