sexta-feira, novembro 30

De quem é a culpa?

" Os homens costumam incriminar os deuses. De nós, dizem, vêm os males. Não consideram que eles padecem aflições causadas por desmandos próprios "

Homero, A Odisséia, Canto 1, Zeus se dirigindo aos outros deuses

Os Vaidosos

“Somos como vitrines de lojas, onde passamos nosso tempo a arrumar, a esconder, a colocar em evidência as pretensas qualidades que os outros nos concedem – para enganarmos a nós mesmos”

Nietzsche, Aurora

sexta-feira, novembro 9

O DELÍRIO

Post longo...mas vale cada linha.



QUE ME CONSTE, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta
minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me
parecia sem destino.
- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.
Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a
estes dous quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me
pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planícia branca de neve, e vários
animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta:
-Onde estamos?
-Já passamos o Éden.
- Bem; paremos na tenda de Abraão.
-Mas se nós caminhamos para trás! Redargüiu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois - cogitações do enfermo - que chegássemos ao fim indicado, não era possível que os séculos, irritados com lhes devassem a
origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranqüilamente em torno de mim. Olhar somente; nada
vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das
cousas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? Destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
-Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
-Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela
vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
-Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existência.
-Sim, verme, tu vives. Não receies perder andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver. Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
Entendeste-me ? disse ela, no fim de algum tempo de mútua
contemplação.
-Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza tu? a Natureza que
eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
-Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
- Sim; o teu olhar fascina-me.
- Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
-Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia. a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
-Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
- Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas
as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros,
eu via tudo o que passava diante de mim,-flagelos e delícias, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia a indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem e cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.
-Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, - talvez monótona mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima O espetáculo.
Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida? mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: "Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante! cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vistas ia enfim ver o último, - último!; mas então já a
rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente, um nevoeiro cobriu tudo,- menos o hipopótamo que ali me
trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...


Machado de Assis, CAPÍTULO VII / O DELÍRIO das MEMORIAS POSTUMAS DE BRAS CUBAS

sábado, novembro 3

A Cidade, a maior ilusão !

"A Cidade, a maior ilusão! Certamente, meu príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e a beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido, escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto, rijo e nobre Adão! Na Cidade findou sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior, a socidade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel.... A sua tranquilidade, onde está meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam a arquejante ocupação de desejar - e que nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; adiante obriga a flanejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera ester vastos armazéns com espelhos, onde a nobre Eva se vende, tarifada ao arrétel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himineu, que circula trazendo em vez do odeante facho da paixão a apertada carteira do dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que o faunos amam as ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos! ....Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque lhe arregimenta dentro da banalidade ou lhe empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de idéias e formas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já expremidas - ou então , para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; e alguns são macacos, saltando do topo dos mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão anti-natural onde o solo é de pau, feltro e alcatrão, o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente estrião...E aqui tens, belo Jacinto, o que é a bela Cidade! "

Eça de Queiroz, As Cidades e as Serras

Escanifrado - magro, seco.

Unto - gordura, banha.

Cangalhas - óculos, em sentido figurado.

Chinós - Cabeleiras postiças, perucas.

Arrátel - peso antigo, equivalente a 459 gramas

Himineu - primitivamente este termo indicava um poesia ou hino nupcial, muito usado entre os gregos e os romanos; por extensão passou a signifcar núpcias, casamente e união.

Faunos - divindades campestres romanas; tinham corpo humano mas chifres e pés de bode.

Ninfas - divindades secundárias femininas representantes da força que preside à reprodução e a fecundidade das naturezas vegetal e animal; gozavam do privilégio da juventude eterna.

Sodoma - antiga cidade da palestina, que segundo o Antigo Testamento foi destruída pelo fogo do céu, por caus da depravação e imoralidade dos seus habitantes.

Lesbos - ilha grega, no mar Egeu, pátria de Safo, poetisa grega do século VI a.c., que teria sido sacerdotisa das práticas lesbianas.

Esgares - trajetos, caretas, macaquices.

Cabriolas - Cambalhotas.

Hestrião - literalmente: ator cômico, palhaço; figuradamente homem vil, charlatão.