sábado, setembro 29

Mozart assassinado e a estranha máquina de entortar homens

"Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado

Voltei para o meu carro e pensava: essa gente quase não sofre seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata de se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não com o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.

O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É o Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens

Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o homem. "

Antoine de Saint Exupéry, Terra dos Homens

Absurdos pequenos domingos

"A verdade não é o que se demonstra, é o que simplifica. De nada vale discutir ideologias: se todas se demonstram, todas também se opõe, e tais discussões fazem desesperar da salvação do homem. Isto quando o homem, em toda parte, ao redor de nós, expõe as mesmas necessidades. Queremos ser libertados. O que dá com uma enxada no chão quer saber o sentido dessa enxada. E a enxada do forçado, não é amesma enxada do lavrador, que exalta o lavrador. A prisão não está onde se trabalha com a enxada. Não há o horror material. A prisão está onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens. E nós queremos fugir da prisão."

"Não compreendo mais essas populações dos trens de subúrbio, esses homens que pensam que são homens e que entretanto estão reduzidos, por uma pressão que eles mesmos não sentem, como formigas, ao uso que deles se faz. Como enchem eles, quando estão livres, seus absurdos pequenos domingos?"

Antoine de Saint Exupéry, Terra dos Homens

segunda-feira, setembro 24

Vivendo ao acaso

“Como é estreito o cenário em que se representa a peça dos ódios, das amizades, das alegrias humanas! De onde foram tirar os homens esse gosto de eternidade, vivendo ao acaso, como vivem, sobre uma larva ainda morna, já ameaçados pelas neves ou pelas areias do futuro? Suas civilizações são enfeites bem frágeis: um vulcão as apaga, ou um mar novo, ou um vento de areia...”

 

Antoine Saint Exupéry, Terra dos Homens

domingo, setembro 23

Omnis festinatio ex parte diaboli est

"Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na linhagem dos antepassados. O "novo" na alma individual é uma recombinação, variável até o infinito, de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa alma tem um caráter eminentemente históricos e não encontram no "realmente-novo-que-acaba-de-aparecer" lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, A antiguidade, O primitivismo e de ter respondido as exigências de nossa pisique a respeito deles. Entrementes, somos lançados num jato de progresso que nos empurra para o futuro, com uma violência tanto mais selvagem quanto mais nos arranca de nossas raízes. Entretanto, se o antigo irrompe, é frequentemente anulado e é impossível deter o movimento para frente. Mas é precisamente a perda da relação com o passado, a perda das raízes, que cria um tal "mal-estar na civilização", a pressa que nos faz viver mais no futuro, com suas promessas quiméricas de idade de ouro, do que no presente, que o futuro da evolução histórica ainda não atingiu. Precipitamo-nos desenfreadamente para o novo, impelidos por um sentimento crescente de mal-estar, de descontentamento, de agitação. Não vivemos mais do que possuímos: porém de promessas; não vemos mais a luz do dia presente: porém perscrutamos a sombra do futuro, esperando a verdadeira alvorada. Não queremos entender que o melhor é sempre compensado pelo pior. A esperança de uma liberade maior é anulada pela escravidão do Estado, sem falar dos terríveis perigos aos quais nos expõem as brilhantes descobertas da ciência. Quanto menos compreendemos o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos a nós mesmo, e contrbuímos com todas as forças para arrancar o indivíduo de seus instintos e de suas raízes: transformado em partícula da massa, obedecendo somente ao que Nietzsche chamava de "espírito da gravidade".

É evidente que as reformas orientadas para frente, isto é, por novos métodos ou gadgets, trazem melhorias imediatas, mas logo se tornam problemáticas e ainda por cima custam muito caro . Não aumentam em nada o bem-estar, o contentamento, a felicidade em seu conjunto. Na maioria das vezes são suavizações passageiras da existência, como por exemplo, os processos de economizar tempo, que infelizmente só lhe precipita o ritimo, deixando-nos assim, cada vez, menos tempo. "Omnis festinatio ex parte diaboli est" (toda pressa vem do diabo), costumavam dizer os antigos mestres."

Carl Jung - Sonhos, Memórias e Reflexões

sábado, setembro 22

Melhor ser vil do que por vil ser tido....

"Melhor ser vil do que por vil ser tido,
Quando se acusa a quem não é de o ser;
E um justo prazer morre, envilecido,
Não por nós, mas por quem assim quer ver.
Por que um olhar adulterado iria
Louvar-me o sangue de impulsivo tom,
Ou se sou fraco, algum mais fraco espia,
Vir dar por mau o que eu pretendo bom?
Não, sou o que sou; quem achar iníquos
Os meus abusos, fala pelos seus:
Posso ser reto, já que são oblíquos,
Não vê a mente espúria os feitos meus;
A menos que a sentençca seja vera,
De que todos são maus e o mau impera."


Shakespeare, Soneto 121

segunda-feira, setembro 17

Na prisão

Minha vista, quer seja aguda, quer seja fraca, não vê senão a certa distância. Vivo e ajo neste espaço, essa linha do horizonte é meu próximo destino, grande ou pequeno ao qual não posso escapar

 

Nietzsche, Aurora, Na prisão

 

 

domingo, setembro 16

Papo furado

" Quando caracterizamos uma conversa como papo furado, queremos dizer que o que sai da boca do falante é apenas isso. Mero vapor. A fala vazia, sem substância ou conteúdo. O uso da linguagem não contribui, portanto, para o propósito que pretende servir. Nenhuma informação é comunicada, como se o falante tivesse apenas exalado. A propósito, há certas semelhanças entre o papo furado e o excremento que fazem papo furado parecer um equivalente especialmente apropriado de falar merda. Da mesma forma que o papo furado é uma fala que foi esvaziada de todo o seu conteúdo infomativo, excremento é matéria da qual foram removidos todos os nutrientes. Ele pode ser visto como o cadáver dos nutrientes, o que resta quando os elementos vitais da comida foram exauridos. Desse ponto de vista, o excremento é uma representação da morte que geramos e, na verdade, que não podemos impedir de gerar no processo de manutenção de nossa vida. Talvez seja por tornarmos a morte tão íntima que consideramos o excremento repugnante. "

Sobre falar merda, Harrey G Frankfurt

quarta-feira, setembro 12

Porque tudo que eu gosto é imoral, ilegal ou engorda?

 

“ O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida: em todos os estados primitivos da humanidade, mal é sinônimo de individual, livre, arbitrário, inabitual, imprevisto e imprevisível

 

Nietzsche, Aurora, Conceito da moralidade dos costumes

quinta-feira, setembro 6

O último dos réprobos

“Quem ousaria, portanto, lançar um olhar no inferno das angústias morais, as mais amargas e mais inúteis, onde provavelmente definharam os homens mais fecundos de todos os tempos! Quem ousaria escutar os suspiros dos solitários e dos transviados: ah! Dêem-me ao menos a loucura, poderes divinos! Dêem-se delírios e convulsões, horas de claridade e de trevas repentinas, aterrorizem-me com arrepios e ardores que jamais mortal algum experimentou, cerquem-me de ruídos e de fantasmas! Deixem-me uivar, gemer e rastejar como um animal: contanto que adquira a fé em mim mesmo! A dúvida me devora, matei a lei, sou o último dos réprobos.”

 

Nietzsche, Aurora, Significação da loucura na história da humanidade.

terça-feira, setembro 4

Girinos otimistas

 

(...) Ah, essa boa gente tão zelosa e saudável sempre me dá a impressão daqueles girinos otimistas que, confinados em uma poça de água de chuva, agitam alegremente a cauda ao sol, sem pensar que no dia seguinte a água rasa secará

 

Carl Jung, Memórias, Sonhos e Reflexões